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Título Original: Андрей Рублёв / Andrey RublyovRealização: Andrei Tarkovsky
Principais Actores: Anatoli Solonitsyn, Ivan Lapikov, Nikolai Grinko, Nikolai Sergeyev, Irma Rauch, Nikolai Burlyayen, Yuri Nazarov
Crítica:
ENTRE O SAGRADO E O PROFANO:
A ARTE COMO EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
A ARTE COMO EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
Qual é o tempo e o lugar da arte,
num mundo assim?
num mundo assim?
Andrei Rubliov é, até certo ponto, como que uma variação d'O Sétimo Selo, acrescente-se o sexo, a violência e a contemplação. É um épico medieval magistralmente bem filmado onde, tal como na obra-prima de Bergman, é vivida uma crise de fé pelo protagonista, enquanto o país (a Rússia, neste caso) vive um conturbado e turbulento período de invasões, de sangrentas batalhas e de repressão religiosa. Todavia, n'O Sétimo Selo, a redenção da Humanidade chega apenas na Morte e com ela se atingem todas as respostas capazes de saciar a angústia existencial. Em Andrei Rubliov, a misericórdia e o perdão de Deus são intensamente procurados na Vida e o apaziguamento é repetidamente procurado, tentem os Homens voar de balão ou edificar um sino.
Corre o século XV e o monge Rubliov é já um conhecido e afamado pintor de ícones, frescos e iluminuras. A narrativa é distribuída por um prólogo, sete episódios e por um epílogo. Porém, muita sabedoria, muita tristeza. Quem multiplica o saber, aumenta a sua angústia. Quanto mais cultiva o seu caminho de iluminação e de purificação, mais se apercebe dos problemas do mundo, do Mal que corrói o Homem e que o distancia de Deus e da palavra de Cristo. O Novo Testamento ecoa, aliás, por toda a obra e o reflexo medieval não lhe faz jus. Rubliov cessa a inspirada arte das pinturas para observar o mundo e para reflectir sobre o real sentido da fé... e o que encontra? Um povo ignorante e obscuro, seguindo às cegas a hipocrisia dos representantes de Deus, conformados com o estado da humanidade:
Tudo é vaidade e perecível! Todas as tolices e vilanias já foram concebidas. Agora, nada mais se faz do que repeti-las. Todo volteia e roda nos mesmos circuitos. Se Cristo voltasse à Terra, seria de novo crucificado!
Qual o sentido da religião quando não há esperança? Quando a fé se resume ao cumprimento escrupuloso de um sem fim de códigos e condutas, desprovidas de valor e de essência? Rubliov lembra a Paixão de Cristo e a Cruz do Homem, que se deveria repetir através dos tempos. Mas o que prevaleceu após o Tempo de Cristo? O Tempo Corrompido... Qual o sentido de proclamar o sagrado por oposição ao profano, quando as principais fundações da crença estão tão fortemente abaladas? Os ortodoxos condenam o paganismo, a nudez da feitiçaria e a noite das orgias... a leviandade, a indecência... o amor vergonhoso e bestial... mas, na verdade, todos os Homens se sentem atraídos pelo desejo... Até mesmo Rubliov, que não cede à carne, mas que ainda assim prova o beijo do pecado. Qual o sentido de proclamar a paz e a justiça entre os Homens quando a guerra se repercute e se intensifica nas duas margens do rio? Os tártaros massacram, violam, saqueiam, devastam... mas não será a mesma, a nossa fé? Não será a mesma, a nossa terra, o nosso sangue? Um tártaro sorria, gritando: mesmo sem nós, dareis cabo uns dos outros, como lobos. E o inimigo estava certo. A doença corre-nos e consome-nos no sangue. Para mal dos nossos pecados, o Mal ganha uma aparência humana. Quem atenta ao Mal, atenta à carne e ao osso humano.
Hipocrisia, ignorância, paganismo, terror: todos estes factores motivam a crise de fé e a desilusão no mundo. Perante o conflito, qual é o diálogo possível entre Deus e os Homens? As palavras, mesmo quando irrompem do silêncio, nascem já corrompidas. A religião revela-se igualmente corrompida, pedante. É por isso que, às tantas, Andrei Rubliov se penitencia com o silêncio. Sentiu-se tentado pela sedução dos corpos. Matou um homem, no calor da batalha. Que homem seria, se não se penitenciasse? Tão hipócrita e impuro como qualquer um dos outros à sua volta?
Perante este estado das coisas, resta a um artista perguntar-se: como encontrar a beleza num mundo assim? A resposta é simples: na arte, despida de palavras. Na pintura. O mestre Cirilo apercebe-se, no final, que as pinturas são como janelas para o céu. Mesmo quando representa acontecimentos terrenos, a pintura (nas igrejas, conventos e catedrais) é qualquer coisa de transcendente, um intermédio entre Deus e os Homens. O artista é, por isso mesmo, um ser privilegiado. E, por esta linha de leitura, Tarkovsky introduz na obra a sua Verdade: a arte, como experiência religiosa, tem um papel fundamental para tantos quantos percorram o caminho da iluminação. A religião, onde outrora se encontrava apaziguamento para as angústias da existência, não é mais suficiente para responder às necessidades dos Homens iluminados. A religião e o passado estão manchados de sangue. A arte é a nova religião, cujas potencialidades se confundem na eternidade. Tarkovsky tenta demonstrá-lo no final, quando a cor dá lugar ao preto e branco e ascende, poderosíssima, a música operática. Para o realizador, assistir a um filme como Andrei Rubliov, é como assistir a um fresco vivo - uma experiência igualmente transcendente.
Entre a luz e as trevas, dotado de excepcionais performances, cenários e banda sonora, eis pois um filme absolutamente magnífico.