Sozinha? Lugar secreto? Bandido? Má consciência? Triste? Aprisionada? Quem quebra o enigma? Quem sabe, ao certo, por que caminhos avança a nossa civilização? Se a primeira cena deixa o mote, a última esbofeteia-nos com a sua frontalidade e simplicidade: uma criança deixa a sua mensagem, em linguagem gestual, e não entendemos nada. Nem um único gesto. É um código desconhecido para a maioria das pessoas, um pouco como aquele que se impôs na vida e no dia-a-dia das sociedades modernas. O mundo conhece a globalização e, quando estaríamos num momento histórico de união, erguem-se entre nós barreiras que, misteriosamente, nos separam. Estaremos condenados à incomunicabilidade?
Código Desconhecido, de Michael Haneke, confronta-nos com o nosso reflexo. E o resultado abala-nos a consciência. A Humanidade avança para a desumanização. É desse modo que estamos e é desse modo que somos. Não é perturbante? É claro que tudo aquilo é representação, é ficção. Aliás, Haneke não perde a oportunidade - uma vez mais - para desenvolver aquela que é uma das suas temáticas predilectas: a auto-consciência da ficção enquanto artifício. Neste filme, o cineasta serve-se mesmo da
mise en abyme: note-se a cena em que a personagem Anne está perante a câmera e o realizador lhe exige que seja verdadeira - há um paralelo imediato com a relação Binoche-Haneke. A cena da piscina e do miúdo no 20º andar, por exemplo, é-nos apresentada como se fizesse parte da diegese do filme. Às tantas, todavia, percebemos que é uma cena de um filme dentro do filme de Haneke. O que é interessante perceber é como o filme é tão real, mesmo com ficção dentro da ficção e sabendo nós perfeitamente o domínio que pisamos.
O argumento desenvolve-se em fragmentos, separados entre si por cortes bruscos e inesperados. Um pouco como as relações que as pessoas desenvolvem no dia-a-dia, se é que lhes podemos chamar
relações. Talvez
contactos seja a palavra mais apropriada. Sobretudo nos meios urbanos, o que as pessoas têm entre si são
contactos. Meros contactos de ocasião, fugazes e superficiais. Aliás, as pessoas evitam o contacto umas com as outras, mesmo sem saberem bem porquê. Falemos, a propósito, das cenas que se passam no metro, que sinedoquizam tão bem isto de que estou a falar. E todos sabem do que estou a falar. Todos nós já entrámos num metro. As regras de existência dentro de um desses fatídicos meios de transporte são ainda mais exigentes. Damos por elas implicitamente e seguimo-las escrupulosamente. Não podemos tocar em ninguém. Não podemos olhar directamente para ninguém. Temos que ignorar os cheiros. E os mendigos. Não podemos ceder o nosso lugar à velhinha que está ali em pé, porque nem sequer a vimos ainda. Temos que segurar firmemente a mala e proteger a carteira. Sabemos que podemos ser assaltados a qualquer momento. Não são estas as regras de existência dentro de um metro? São. Mas porque é que somos assim? Porque é que aceitamos estes códigos como se fossem princípios inquestionáveis? Porque é que não dizemos mais um
bom dia, um
boa tarde ou um
boa noite, um
obrigado ou um
desculpe, porque é que não somos delicados com as pessoas? Que monstros estamos nós a ser - todos os dias - sem querer admitir que o somos? Os monstros são os outros? Tão depressa são os outros como somos nós! A cena da mendiga, logo a princípio, dá alento a esta tese. O preto repreende o miúdo porque foi mal-educado para a mendiga. O preto acaba na esquadra, a mendiga deportada para o seu país de origem e o miúdo acaba impune. Efeito borboleta, efeito caos, efeito perdição. Estamos todos interligados, mas ignoramo-lo. Constantemente. E, à medida que o tempo passa, entendemo-nos cada vez menos. Somos intolerantes aos costumes, tradições, religiões e atitudes. E, por fim, somos intolerantes connosco mesmos. Nem o simples, necessário e tão humano acto de chorar toleramos mais. Estaremos condenados à incomunicabilidade? Estamos, parece-me, condenados ao assumir de uma nova identidade. Mesmo que não nos identifiquemos mais com ela.
Sublimemente interpretado e orquestrado, eis, pois, um filme magnífico que é, em simultâneo, um ensaio sociológico e antropológico extremamente importante e absolutamente memorável.
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Nota especial para o subtítulo, em português Relato Incompleto de Diversas Viagens, que acaba por justificar e enquadrar o tema e o modelo narrativo do filme.