domingo, 5 de dezembro de 2010

APOCALYPTO (2006)

PONTUAÇÃO: MUITO BOM
Título Original: Apocalypto
Realização
: Mel Gibson

Principais Actores: Rudy Youngblood, Dalia Hernandez, Jonathan Brewer, Morris Birdyellowhead, Raoul Trujillo, Rodolfo Palacios

Crítica: 


O ECLIPSE MORTAL


Apocalypto é um ritual de morte e sacrifício num mundo condenado à extinção. É trágico, brutal e sangrento. Aquele movimento de chariot inicial leva-nos into the wild e a selva e a natureza absorvem-nos por completo. Depois, é Mel Gibson que nos leva, dotado de mestria. E desta vez somos transportados - por inteiro - ao íntimo cultural e místico da sociedade Maia, perdida no tempo, perpetuada na memória e agora recriada sob um conceito visual arrojadíssimo: se os cenários se revelam, por um lado, grandiosos e cheios de detalhe, o guarda-roupa, por outro, é de uma concepção de todo incrível e arrebata-nos, falando por si só, diferenciando os diferentes extractos sociais. O trabalho de caracterização é, também, de uma qualidade e perfeição que nos transcende, reclamando autenticidade por todos os poros. Apesar da liberdade artística que não faz dele, propriamente, um documentário de rigor histórico, o filme demonstra um realismo atroz. Juntamente com a extraordinária fotografia de Dean Semler, Mel Gibson capta praticamente todo o espírito do argumento a partir da paisagem (seja ela natural ou artística) e isso é um feito admirável: é quase cinema em estado primitivo. Quantas não são as vezes, afinal, em que se precinde do diálogo para apenas ver e ouvir aqueles ambientes? É nessa qualidade que reside o principal fascínio de Apocalypto, esta obra sublime, de uma beleza impressionante.

Eu vi uma fossa no Homem, profunda como uma fome que nunca saciará. É ela que o torna triste e que o faz querer mais. Ele vai continuar a tomar mais e mais até ao dia em que o mundo dirá 'Já deixei de existir e nada mais tenho para dar.'

É assim que termina a fábula que o ancião a todos conta naquela última noite de paz na aldeia. O ancião significa conhecimento e é uma figura amplamente respeitada. Essa sabedoria popular, assim como as superstições, os presságios e os sonhos, desempenha um papel fundamental no dia-a-dia dos Maias. São conhecidos como uma civilização bastante sofisticada, mas também é certo que eram muito religiosos. A sua devoção aos deuses levou alguns povos à loucura e à auto-destruição. É essa a cegueira de muitos fundamentalismos. E é esse o motivo que desencadeia toda a trama de Apocalypto. As doenças devastam e dizimam a população, eles crêem que o solo está enfermo e que devem satisfazer os deuses, para que estes os abençoem com a cura e com a salvação. O sangue dos sacrifícios renovará a terra. Contudo, a pior doença corrói-os no espírito e disso não têm consciência. Uma obra como Apocalypto tece, pois, uma crítica mordaz às sociedades humanas, independentemente da sua época ou das suas origens: as suas convicções, impregnadas de maldade e avidez, podem conduzir aos mais hediondos e monstruosos actos. O próprio ser humano pode ser o mais perigoso dos animais, a face mais cruel da natureza.

Se até à perturbadora cena do eclipse, de encontro ao coração da cidade e da cultura Maia, a obra mostra uma intensidade, exotismo e estranheza crescentes, é certo que a partir daqui a diegese se centra no retorno a casa de Pata-Jaguar, de encontro ao coração da selva e da natureza humana. Mas nem por isso cai, pelo menos, a intensidade ou o exotismo daquele paraíso ameaçado. O filme ganha contornos empolgantes, excitantes e capaz de pôr os nervos à flôr-da-pele, à medida que as sequências de acção se sucedem e que a luta pela sobrevivência se dificulta e é levada aos limites da resistência. Mel Gibson filma esta aventura aos confins da América com alma e coração, sem nunca prescindir da sua estética sobre o lado negro e violento do Homem. Os desempenhos de Rudy Youngblood, Jonathan Brewer ou de Raoul Trujillo são notáveis. E a composição de James Horner é magnífica, fluindo naturalmente entre a afirmação e a subtileza, consoante as necessidades dramáticas.

Por fim, Apocalypto não é senão uma saga pelos valores ancestrais e intemporais da família:

Chamo-me Pedra-Céu e caço nesta floresta desde que me tornei homem. E o meu pai caçou nela comigo e já caçava nela antes de mim. O meu filho, Pata-Jaguar, caça nesta floresta comigo. E caçará com o filho dele depois de eu morrer.

A luta de Pata-Jaguar é a luta pela preservação da família, pelo respeito pelos antepassados e pelo assegurar de um futuro às gerações vindouras. E essa é - ou pelo menos deveria ser - a luta universal de cada um de nós.

Apocalypto é, pois, um filme inesquecível. Um grande pedaço de arte e um forte apelo à reflexão.

17 comentários:

  1. Um pedaço de cinema interessante do ponto de vista histórico, original e de proporções visuais grandiosas. Mas apenas se fica por aí.

    ResponderEliminar
  2. Concordo um pouco com o Flávio Gonçalves. Gosto bastante da articulação histórica, do impacto visual, enfim, do trabalho que foi criado em torno do tema. Mel Gibson esmerou-se. No entanto, a dado momento julgo que este se perde um pouco (a cena da perseguição final é exaustiva, menos 5/10 minutos e chegava) e a violência chega a tornar-se gratuita.
    Enfim, são pormenores que gosto de apontar a quem vai ver o filme, mas que não retiraram o meu apreço pela obra.
    Boa crítica, como sempre.

    ResponderEliminar
  3. Eu fiquei abalado (pela positiva) quando o vi. Estou a precisar de o rever, mas o cariz violento não puxa muito...

    O que mais me marcou foi o final. Fantástico.

    Abraço

    P.S.- Bela imagem. Posta por alguma razão especial?

    ResponderEliminar
  4. O filme está imensamente belo. As suas paisagens e planos, quanto à vertente histórica, como tu referiste, a devoção aos deuses e a luta estão muito bem canalizadas no filme, embora desta grandiosidade atreviria-me a dar o 8.

    Abraço
    http://nekascw.blogspot.com/

    ResponderEliminar
  5. Acho Apocalypto um filme fraco. Com uma direção arrojada por parte de Mel Gibson, mas sem uma boa utlização histórica.

    É como se a utlização do povo Maia fosse apenas uma desculpa para cenas de forte violência.

    Uma história desinteressante, enfim.

    Abraço.
    Cinema para Desocupados

    ResponderEliminar
  6. Concordo contigo Roberto. Aliás, Mel Gibson tem vindo a surpreender desde o grande Braveheart. E tanto este, como o Passion of the Christ e o Braveheart são grandes filmes.

    ResponderEliminar
  7. FLÁVIO GONÇALVES: Por acaso, não creio que seja interessante do ponto de vista histórico. Aliás, não se prende à História e chega a ser crassamente anacrónico. Lá que é original é, sem dúvida, na abordagem. Visualmente é também grandioso. E, na minha opinião, é muito mais cinema do que apenas isso.

    CLÁUDIA GAMEIRO: Obrigado ;) Quanto a APOCALYPTO, não estamos de acordo. Não vejo violência gratuita, vejo estética. Uma estética arrojada sobre violência, com violência. Violência explícita, que conduz à reflexão. E o conceito para mim faz todo o sentido.

    JACKIE BROWN: Por acaso não o acho assim tão tão violento, mas é porque depois de A PAIXÃO DE CRISTO já estou para tudo ;D Mas é claro que tem mais violência do que a habitual num épico do género. Pelo menos mais explícita.
    Por acaso recordo muitas cenas que me marcaram e não só o final. O filme é maravilhoso.
    Quanto à imagem, apeteceu-me colocá-la. Foi, porventura, o fotograma que mais gostei na película. E gostei tanto do efeito que já adicionei imagens a várias críticas ;D

    NEKAS: Os vossos oitos e noves correspondem mais ou menos e tantas vezes ao meu MUITO BOM.
    O filme é mesmo imensamente belo.

    MATEUS, O INDOLENTE: E para que serviria uma «boa utilização histórica»? Torná-la-ia uma obra de arte melhor?
    Quanto ao conteúdo do seu segundo parágrafo, discordo dele absolutamente.
    Quanto ao conteúdo do terceiro, também ;)

    ÁLVARO MARTINS: Absolutamente. Já tivemos em tempos uma discussão acesa sobre A PAIXÃO DE CRISTO, mas já re-avaliei a minha opinião em relação ao filme. Tenho que tecer uma melhor crítica ao filme. Fá-lo-ei em breve, espero.

    Cumps.
    Roberto Simões
    CINEROAD - A Estrada do Cinema

    ResponderEliminar
  8. Realmente Mel Gibson faz poucos filmes, mas quando os faz...surgem obras como esta, que à parte do pedaço histórico ou realista que tenta transparecer, é acima de tudo um prazer assistir a um argumento tão bem construído sem pressas e a seu tempo, através de personagens credíveis num ambiente tão único e esquecido por vezes, mas que detém imensa potencialidade e frescura. O material é original e talvez seja por isso mais fácil de assistir e de se gostar, mas que inegavelmente é um filme a recomendar...sem dúvida.
    Talvez carece de uma banda sonora mais presente que nos guie pelas paisagens e pelas cenas sem diálogo, no entanto de dizer que os sons naturais por vezes possuem e conseguem substituir essa ferramenta! Não me parece totalmente aqui o caso, pelo menos a nível pessoal.

    abraço

    ResponderEliminar
  9. JORGE: Gostei do teu comentário. Concordo contigo, a banda sonora podia ser melhor. Mas ainda assim creio que não prejudica o todo, que é um autêntico achado.

    Cumps.
    Roberto Simões
    » CINEROAD - A Estrada do Cinema «

    ResponderEliminar
  10. Ao contrário da opinião generalizada eu não vejo nada de extraordinário neste intento de Mel Gibson. Aliás não lhe reconheço sequer capacidades enquanto realizador.

    ResponderEliminar
  11. PEDRO PEREIRA: Mais heresias ;D Estou a ver que temos - mesmo - opiniões muito distintas em relação à arte do cinema.

    Cumps.
    Roberto Simões
    » CINEROAD - A Estrada do Cinema «

    ResponderEliminar
  12. É um autêntico portento de Cinema, poderoso nas imagens e na história contada.

    Mel Gibson *é* realizador e sabe aliar-se aos melhores técnicos da indústria. Revela também um sentido de perfeccionismo que, por vezes (mas sempre a anos-luz, claro!), só é comparável ao de Kubrick.

    Mais uma vez, excelente texto!

    Abraço.

    ResponderEliminar
  13. SAM: Obrigado ;) Partilho da mesma opinião e do mesmo apreço pelo filme e pelo realizador. Grande filme.

    Cumps.
    Roberto Simões
    » CINEROAD – A Estrada do Cinema «

    ResponderEliminar
  14. Este fim-de-semana trabalhaste bem! Parabéns por todos estes textos, vou passar algumas horas a lê-los.

    ResponderEliminar
  15. Bastante interessante, mas não consigo vê-lo como um filme capaz de ter essa pontuação. :)

    http://cinemaschallenge.blogspot.com/

    ResponderEliminar
  16. Não gostei do final: "os bons cristãos chegaram para por um fim à esta barbárie" (como se os espanhois não tivessem procedido a um genocídio), mas todo o resto me agrada bastante. É um filme que sempre exibo aos meus alunos, desde o seu lançamento.

    ResponderEliminar

Comente e participe. O seu testemunho enriquece este encontro de opiniões.

Volte sempre e confira as respostas dadas aos seus comentários.

Obrigado.


<br>


CINEROAD ©2020 de Roberto Simões